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Ruben Braga
Biografia
Rubem Braga, considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis, nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913.
Iniciou seus estudos naquela cidade, porém, quando fazia o ginásio, revoltou-se com um professor de matemática que o chamou de burro e pediu ao pai para sair da escola.
Sua família o enviou para Niterói, onde moravam alguns parentes, para estudar no Colégio Salesiano.
Iniciou-se no jornalismo profissional ainda estudante, aos 15 anos, no Correio do Sul, em Cachoeiro de Itapemirim, fazendo reportagens e assinando crônicas diárias no jornal Diário da Tarde.
Iniciou a faculdade de Direito no Rio de Janeiro, mas se formou em Belo Horizonte, MG, em 1932, depois de ter participado, como repórter dos Diários Associados, da cobertura da Revolução Constitucionalista, em Minas Gerais — no front da Mantiqueira conheceu Juscelino Kubitschek de Oliveira e Adhemar de Barros.
Na capital mineira se casou, em 1936, com Zora Seljan Braga, de quem posteriormente se desquitou, mãe de seu único filho Roberto Braga.
Foi correspondente de guerra do Diário Carioca na Itália, onde escreveu o livro "Com a FEB na Itália", em 1945, sendo que lá fez amizade com Joel Silveira. De volta ao Brasil, morou em Recife, Porto Alegre e São Paulo, antes de se estabelecer definitivamente no Rio de Janeiro, primeiro numa pensão do Catete, onde foi companheiro de Graciliano Ramos; depois, numa casa no Posto Seis, em Copacabana, e por fim num apartamento na Rua Barão da Torre, em Ipanema.
Sua vida no Brasil, no Estado Novo, não foi mais fácil do que a dos tempos de guerra. Foi preso algumas vezes, e em diversas ocasiões andou se escondendo da repressão.
Seu primeiro livro, "O Conde e o Passarinho", foi publicado em 1936, quando o autor tinha 22 anos, pela Editora José Olympio. Na crônica-título, escreveu: "A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde."
De fato, quase tanto como pelos seus livros, o cronista ficou famoso pelo seu temperamento introspectivo e por gostar da solidão. Como escritor, Rubem Braga teve a característica singular de ser o único autor nacional de primeira linha a se tornar célebre exclusivamente através da crônica, um gênero que não é recomendável a quem almeja a posteridade.
Certa vez, solicitado pelo amigo Fernando Sabino a fazer uma descrição de si mesmo, declarou: "Sempre escrevi para ser publicado no dia seguinte. Como o marido que tem que dormir com a esposa: pode estar achando gostoso, mas é uma obrigação. Sou uma máquina de escrever com algum uso, mas em bom estado de funcionamento.
Foi com Fernando Sabino e Otto Lara Resende que Rubem Braga fundou, em 1968, a editora Sabiá, responsável pelo lançamento no Brasil de escritores como Gabriel Garcia Márquez, Pablo Neruda e Jorge Luis Borges.
Segundo o crítico Afrânio Coutinho, a marca registrada dos textos de Rubem Braga é a "crônica poética, na qual alia um estilo próprio a um intenso lirismo, provocado pelos acontecimentos cotidianos, pelas paisagens, pelos estados de alma, pelas pessoas, pela natureza."
A chave para entendermos a popularidade de sua obra, toda ela composta de volumes de crônicas sucessivamente esgotados, foi dada pelo próprio escritor: ele gostava de declarar que um dos versos mais bonitos de Camões ("A grande dor das coisas que passaram") fora escrito apenas com palavras corriqueiras do idioma.
Da mesma forma, suas crônicas eram marcadas pela linguagem coloquial e pelas temáticas simples. Rubem Braga exerceu as funções de repórter, redator, editorialista e cronista em jornais e revistas do Rio, de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife.
Foi correspondente de "O Globo" em Paris, em 1947, e do "Correio da Manhã" em 1950.
Amigo de Café Filho (vice-presidente e depois presidente do Brasil) foi nomeado Chefe do Escritório Comercial do Brasil em Santiago, no Chile, em 1953.
Em 1961, com os amigos Jânio Quadros na Presidência e Affonso Arinos no Itamaraty, tornou-se Embaixador do Brasil no Marrocos.
Mas Braga nunca se afastou do jornalismo. Fez reportagens sobre assuntos culturais, econômicos e políticos na Argentina, nos Estados Unidos, em Cuba, e em outros países.
No período de 1961 a 1963, Rubem Braga foi embaixador do Brasil no Marrocos, na África.
Publicou "Ai de Ti Copacabana"(1960)."A Traição das Elegantes" (1967), "Recado de Primavera" (1984) e "As Boas Coisas da Vida"(1988), entre outros.
O encontro de três amigos com quem o cronista-poeta Rubem Braga tinha maior afinidade não foi como tantos outros, cheios de debates e tiradas divertidas. Moacyr Werneck de Castro, Edvaldo Pacote e Otto Lara Resende pressentiram o motivo do convite feito numa noite de segunda-feira, na sua cobertura em Ipanema.
Dois dias depois, dia 19 de dezembro de 1990, numa quarta-feira, faleceu Rubem Braga no hospital Samaritano, no Rio de Janeiro.
Edvaldo Pacote declarou: "O Rubem era um turrão, com uma veia extraordinária de humor. Uma pessoa fechada, ao mesmo tempo poeta e poético. Era preciso ser muito seu amigo para que ele entreabrisse uma porta de sua alma. Ele só era menos contido com as mulheres. Quando não estava apaixonado por uma em particular, estava apaixonado por todas.
Eu o levei para a Globo... Ele escrevia todos os textos que exigiam mais sensibilidade e qualidade, e fazia isto mantendo um grande apelo popular."
Histórias de Ruben Braga
Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando. Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador. No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos,e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho. O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho. O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá. No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar. O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro. Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivesse o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha. Nosso corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemlava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado. Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos. Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação. E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança. |
Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão. 6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações. Antes de te perder eu agravarei tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas jóias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana! Crônica extraída do livro "Ai de ti, Copacabana" |
Acontece que o Conde Matarazzo estava passeando pelo parque. O Conde Matarazzo é um Conde muito velho, que tem muitas fábricas. Tem também muitas honras. Uma delas consiste em uma preciosa medalhinha de ouro que o Conde exibia à lapela, amarrada a uma fitinha. Era uma condecoração (sem trocadilho). Devo confessar preliminarmente que entre um Conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de contas, um passarinho canta e voa. O Conde não sabe gorjear nem voar. O Conde gorjeia com apitos de usinas, barulheiras enormes, de fábricas espalhadas pelo Brasil, vozes dos operários, dos teares, das máquinas de aço e de carne que trabalham para o Conde. O Conde gorjeia com o dinheiro que entra e sai de seus cofres, o Conde é um industrial, e o Conde é Conde porque é industrial. O passarinho não é industrial, não é Conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho. Entretanto, eu não quisera ser Conde. A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser Conde. Não amo os Condes. Também não amo os industriais. Que eu amo? Pierina e pouco mais. Pierina e a vida, duas coisas que se confundem hoje, e amanhã mais se confundirão na morte. Entendo por vida o fato de um homem viver fumando nos três primeiros bancos e falando ao motorneiro. Ainda ontem ou anteontem assim escrevi. O essencial é falar ao motorneiro. O povo deve falar ao motorneiro. Se o motorneiro se fizer de surdo, o povo deve puxar a aba do paletó do motorneiro. Em geral, nessas circunstâncias, o motorneiro dá um coice. Então o povo deve agarrar o motorneiro, apoderar-se da manivela, colocar o bonde a nove pontos, cortar o motorneiro em pedacinhos e comê-lo com farofa. Quando eu era calouro de Direito, aconteceu que uma turma de calouros assaltou um bonde. Foi um assalto imortal. Marcamos no relógio quanto nos deu na cabeça, e declaramos que a passagem era grátis. O motorneiro e o condutor perderam, rápida e violentamente, o exercício de suas funções. Perderam também os bonés. Os bonés eram os símbolos do poder. Desde aquele momento perdi o respeito por todos os motorneiros e condutores. Aquilo foi apenas uma boa molecagem. Paciência. A vida também é uma imensa molecagem. Molecagem podre. Quando poderás ser um urubu, meu velho Rubem? Mas voltemos ao Conde e ao passarinho. Ora, o Conde estava passeando e veio o passarinho. O Conde desejou ser que nem o seu patrício, o outro Francisco, o Francisco da Umbria, para conversar com o passarinho. Mas não era aquele, o São Francisco de Assis, era apenas o Conde Francisco Matarazzo. Porém, ficou encantado ao reparar que o passarinho voava para ele. O Conde ergueu as mãos, feito uma criança, feito um santo. Mas não eram mãos de criança nem de santo, eram mãos de Conde industrial. O passarinho desviou e se dirigiu firme para o peito do Conde. Ia bicar seu coração? Não, ele não era um bicho grande de bico forte, não era, por exemplo, um urubu, era apenas um passarinho. Bicou a fitinha, puxou, saiu voando com a fitinha e com a medalha. Leio a reclamação de um repórter irritado que precisava falar com um delegado e lhe disseram que o homem havia ido tomar um cafezinho. Ele esperou longamente, e chegou à conclusão de que o funcionário passou o dia inteiro tomando café. A lista é terrivelmente minuciosa; eu terei que apresentar, ao sair desta casa, tantos ganchos de pendurar roupa e tantos cinzeirinhos de cobre; que já que insisti pelo piano, tenho que me conformar com a presença de um enorme e sinistro meuble musiqueiro, onde se guardam velhos tangos e valsas. Meu amigo confere as coisas, de lista na mão e a velha vai repetindo os nomes e apontando os objetos, numa ladainha interminável; bocejo no meio de meu reino desordenado e precário; uma a uma terei de entregar um dia todas essas coisas de volta a esses velhos; e para eles são coisas de certo modo sagradas, como o longo contato de seus olhos e de suas mãos, coisas de suas vidas que incorporaram minutos e anos, lembranças, palavras, emoções. Bocejo, depois fumo: nego-me a examinar, como eles gostariam, o detalhe de cada coisa, a minha indeferença parece que vagamente os ofende. Creio que sentem no fundo da alma um odeio deste estranho que vai morar em sua casa, com suas coisas; sou um intruso, o mais antipático dos intrusos, o intruso que paga o direito de ser intruso. E então eles ficam mais minuciosos, gastam meia hora para acrescentar na lista algumas coisinhas sem importância que tinham omitido, são avaros do que me alugam... Partem. Chego à janela, vejo os que fecham com todo o cuidado o portão, e sorrio.Esses velhos são uns insensatos. Arrolaram centenas de cacarecos inúteis e se esqueceram do mais importante, do que me atraiu a esta casa, dos bens sem preço, que um vândalo poderia destruir, e entretanto, não estão no inventário, daqueles bens, que se sumissem, fariam esses dois velhos desfalecer de espanto e de dor; o que eles não compraram com dinheiro, com o longo amor, o longo, cotidiano carinho:as árvores altas, belas, ainda úmidas de chuva da noite, brilhando muito verdes, ao sol. Nota. Na parte de civilização francesa, farei a versão dessa crônica para o francês "Sempre tenho confiança de que não serei De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde. Mas percebo um movimento em um ponto do mar; é um homem nadando. Ele nada a uma certa distância da praia, em braçadas pausadas e fortes; nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e somem parecem ir mais depressa do que ele. Justo: espumas são leves, não são feitas de nada, toda sua substância é água e vento e luz, e o homem tem sua carne, seus ossos, seu coração, todo seu corpo a transportar na água. Ele usa os músculos com uma calma energia; avança. Certamente não suspeita de que um desconhecido o vê e o admira porque ele está nadando na praia deserta. Não sei de onde vem essa admiração, mas encontro nesse homem uma nobreza calma, sinto-me solidário com ele, acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo uma bela missão. Já nadou em minha presença uns trezentos metros; antes, não sei; duas vezes o perdi de vista, quando ele passou atrás das árvores, mas esperei com toda confiança que reaparecesse sua cabeça, e o movimento alternado de seus braços. Mais uns cinqüenta metros, e o perderei de vista, pois um telhado a esconderá. Que ele nade bem esses cinqüenta ou sessenta metros; isto me parece importante; é preciso que conserve a mesma batida de sua braçada, e que eu o veja desaparecer assim como o vi aparecer, no mesmo rumo, no mesmo ritmo, forte, lento, sereno. Será perfeito; a imagem desse homem me faz bem. Agora não sou mais responsável por ele; cumpri o meu dever, e ele cumpriu o seu. Admiro-o. Não consigo saber em que reside, para mim, a grandeza de sua tarefa; ele não estava fazendo nenhum gesto a favor de alguém, nem construindo algo de útil; mas certamente fazia uma coisa bela, e a fazia de um modo puro e viril. Não desço para ir esperá-lo na praia e lhe apertar a mão; mas dou meu silencioso apoio, minha atenção e minha estima a esse desconhecido, a esse nobre animal, a esse homem, a esse correto irmão. Extraído do livro: "A Cidade e a Roça" DEBRUÇADO cá em cima, no 13.° andar, fiquei olhando a porta do edifício à espera de que surgisse o seu vulto lá embaixo. Eu a levara até o elevador, ao mesmo tempo aflito para que ela partisse e triste com a sua partida. Nossa conversa fora amarga. Quando lhe abri a porta do elevador esbocei um gesto de carinho na despedida, mas, como eu previra, ela resistiu. Pela abertura da porta vi sua cabeça de perfil, séria, descer, sumir. Agora sentia necessidade de vê-la sair do edifício, mas o elevador deve ter parado no caminho, porque demorou um pouco a surgir seu vulto rápido. Desceu a escada fez uma pequena volta para evitar uma poça de água, caminhou até a esquina, atravessou a rua. Vi-a ainda um instante andando pela calçada da transversal, diante do café; e desapareceu, sem olhar para trás. "Valente menina!" — foi o que murmurei ao acaso lembrando um verso antigo de Vinicius de Moraes; e no mesmo instante me lembrei também de uma frase ocasional de Pablo Neruda, num domingo em que fui visitá-lo em sua casa de Isla Negra, no Chile. "Que valientes son las chilenas!" dissera ele, apontando uma mulher de maiô que entrava no mar ali em frente, na manhã nublada; e explicara que estivera andando pela praia e apenas molhara os pés na espuma: a água estava gelada, de cortar. "Valente menina!" Lá embaixo, na rua, era tocante seu pequeno vulto, reduzido pela projeção vertical. Iria com os olhos úmidos ou sentiria apenas a alma vazia? "Valente menina!" Como a chilena que enfrentava o mar, em Isla Negra, ela também enfrentava sua solidão. E eu ficava com a minha, parado, burro, triste, vendo-a partir por minha culpa. Deitei-me na rede, sentindo dor de cabeça e um certo desgosto por mim mesmo. Eu poderia ser pai dessa moça — e me pergunto o que sentiria, como pai, se soubesse de uma aventura sua, como essa, com um homem de minha idade. Tolice! Os pais nunca sabem nada, e quando sabem não compreendem; estão perto e longe demais para entender. Ele, esse pai de quem ela falava tanto, não acreditaria se a visse entrar pela primeira vez em minha casa, como entrou, com sua bolsa a tiracolo, o passo leve e o riso nervoso. "Como você pensava que eu fosse?" Lembro-me de que fiquei olhando, meio divertido, meio assustado, aquela mocetona loura e ágil que só falava me olhando nos olhos, e me fez as confissões mais íntimas e graves entremeadas de mentiras pueris — sempre me olhando nos olhos. Disse-me que a metade das coisas que me contara pelo telefone era pura invenção — e logo inventou outras. Senti que suas mentiras eram um jeito enviesado que ela tinha de se contar, um meio de dar um pouco de lógica às suas verdades confusas. A ternura e o tremor de seu duro corpo juvenil, seu riso, a insolência alegre com que invadiu minha casa e minha vida, e suas previsíveis crises de pranto — tudo me perturbou um pouco, mas reagi. Terei sido grosseiro ou mesquinho, terei deixado sua pequena alma trêmula mais pobre e mais só? Faço-me estas perguntas, e ao mesmo tempo me sinto ridículo em fazê-las. Essa moça tem a vida pela frente, e um dia se lembrará de nossa história como de uma anedota engraçada de sua própria vida, e talvez a conte a outro homem olhando-o nos olhos, passando a mão pelos seus cabelos, às vezes rindo — e talvez ele suspeite de que seja tudo mentira. |
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